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sábado, 17 de agosto de 2013

8 | O único instante em que gargalharam.

ELA Somos, fomos, você e eu, nossas histórias, nossas certezas.
Nossa maneira de sentir as coisas, disso não podemos nos arrepender
Cá você, lá eu,
é a distância que nos ajuda a nos reconhecer
que mistério é o que se cruza entre nós dois
fazendo-nos esquecer tanto passado quem sabe se somos tão diferentes
o que terá crescido tanto entre nós dois?
alguma coisa que não entendo, alguma coisa mais além que me faz
sentir ambígua e que me produz terror ter sentido piedade em algum momento
Como foi que surgiu, apesar de mim, isto da piedade entre os dois como piedade converter-me em piedosa eu que nunca o fui
ELE Um domingo de tarde eu tinha ido te visitar e tinha levado torta de ricota que você gostava, porque tinha me dito um dia
Você perguntou quem era meu pai
Meu pai?, disse eu, me ouviu bem, me disse eu não sei quem era meu pai, te disse, sabia, me disse, e depois de provar a torta perguntou e tua mãe? Minha mãe, sim, eu conheci bem
Imaginava, disse você
curioso, do meu pai eu só tenho lembrança, uma lembrança que sempre me volta...
como se toda a relação com meu pai se revelasse através dessa lembrança
eu tinha perto de nove ou dez anos
tinha chegado em casa chorando, porque uns meninos tinham me batido na rua
meu pai perguntou que idade tinham os meninos
eu disse que eram maiores que eu, que tinham doze ou treze anos
me disse que queria vê-los, prometeu que não ia se meter com eles que só queria vê-los
fomos juntos caminhando até a praça onde a turma em geral se reunia. Estavam lá. Não nos viram. Papai perguntou qual tinha sido o que tinha me batido.
Mostrei um deles o maior deles para mim, que tinha bigodes
meu pai me disse e esse idiota te bateu?
Vai lá e bate nele agora mesmo
eu não vou deixar que nenhum outro menino se meta
anda e fala para ele que você veio bater nele sozinho
eu olhei o menino de bigodes, me pareceu maior que nunca tive uma sensação física de debilidade enorme, sentia que ia desmaiar, tremia de medo...
Você tem que brigar com ele, anda, o garoto jogava bolinhas papai estava impaciente com minha covardia, anda não seja cagão
anda vai e bate nele
e quanto mais papai insistia mais eu me aterrorizava.
Agora é o momento, anda e diz que quer brigar com ele sozinho, sem os amigos, que você quer bater nele sozinho você vai ver como se encolhe, certeza que vai se encolher.
Eu não saía do terror, tinha a impressão de que era muito maior e muito mais forte do que eu, mas papai insistia.
Para mim essa cena não acabava mais, foi eterna
é provável que tenha durado apenas um ou dois minutos
só sei que num momento disse pro meu pai
quero ir embora pra casa, não tenho coragem
Certeza que não tem? Me lembro de seus olhos. Sua expressão desembaraçada, sua frustração infinita. Seu filho era um covarde.
Não podia acreditar, não tenho coragem é maior do que eu lhe disse...
não, não é maior, se você não tem coragem não se engane a você mesmo e vamos para casa... e voltamos caminhando em Silêncio junto.
Ainda depois de muitos anos, sempre tive a sensação de que papai nunca me perdoou essa covardia...
que marcou nossa relação para sempre. Esse dia permaneceu oculto entre nós
vergonhosamente silenciado e cúmplice.

Foi a marca por onde transitou nossa história.