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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Do inconsciente coletivo em NÃO DOIS

         
O diretor como espectador de profissão 1.
Há uma intuição amorfa que é minha relação com a peça. Estou convencido de que esta peça precisa ser feita hoje, e sem esta convicção não posso fazê-la. (Brook, 1987)

Em 2007 me deparei, pela primeira vez, com o conceito de intuição amorfa desenvolvido por Peter Brook e colocado em questão pela professora Joana Lebreiro na disciplina Direção III. Lembro-me que neste momento comecei a ter clareza de que aquilo que eu viria a produzir como diretor teatral dizia respeito, em primeiro lugar, ao meu universo particular. Independente do ponto de chegada, a partida derivaria sempre de um ponto de vista particular que buscasse encontrar seu eco num espaço outro. Foi quando passei a dar atenção às minhas intuições e a pensar com mais cuidado sobre o espectador, sobre aquele ao qual eu destinaria a minha produção.

No final de 2008, ao começar a montagem de Direção V sobre o texto PASO-DE-DOS (do dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky), cuja estreia aconteceu em dezembro de 2009, me deparei com a noção de inconsciente coletivo. Na obra Em busca de um teatro pobre, Grotowski afirma: para que o espectador seja estimulado a uma auto-análise, quando confrontado com o ator, deve existir algo em comum a ligá-los, algo que possa ser desmanchado com um gesto, ou mantido com adoração. Portanto, o teatro deve atacar o que se chama de complexos coletivos da sociedade, [...] aqueles mitos que não constituem invenções da mente, mas que são, por assim dizer, herdados através de um sangue, uma religião, uma cultura e um clima (Grotowski, 1968).

A partir dos escritos de Grotowski, desenhei uma “função” para a obra de arte que me interessava: ser ela capaz de gerar em quem se relaciona com ela, alguma autonomia crítica. Para isso, seria inevitável um embate, algum encontro provável entre obra e espectador. Fui então estudar o inconsciente coletivo a fim de esclarecer aquilo que Jung supõe que sejam sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade (Jung, 1943). Ora, se minhas montagens teatrais se destinavam ao outro, talvez eu devesse buscar entender alguma lógica possível sobre o outro. E, logo, optei que meus exercícios de direção se tornassem embates vivos, mais questionamentos e menos respostas, porque pelo encontro me parecia ser possível evocar no espectador algum esforço individual de compreensão. Mais que isso: evocar no espectador sua(s) maneira(s) de lidar com a obra e, inevitavelmente, sua(s) forma(s) de ler o mundo.

Acabei achando tudo isso pretensioso demais. Mas algo me dizia que era isso sim. Dessa forma, a melhor maneira de encontrar clareza foi se jogar em meio à escuridão. Fui então com minha Direção V experimentar estas intuições por sobre um texto de violência e dependência entre um homem e uma mulher, entre um torturador e uma torturada. Já em processo com os atores, cheguei a um ditado popular que assegurava em si justamente uma leitura que eu queria “atacar”. Uma leitura que precisava ser relativizada, a fim de perder seu posto de verdade universal e configurar-se, naturalmente, como uma possibilidade e não mais como fim, inevitabilidade.


A expressão “quem cala consente” é vista por mim como uma dessas heranças apontadas por Grotowski. Ainda me soa muito ingênua, mas se inscreve, para mim, no âmbito do inconsciente coletivo, pois se configura como uma lógica já instituída e divulgada, mesmo que não compreendida ou aceita. Eu não tenho em mim a clareza de quando comecei a acreditar que quem cala está consentindo. Com a encenação de PASO-DE-DOS (que acabou sendo chamada de NÃO DOIS) construímos uma representação que se esforçava em tornar ruidosas algumas leituras já enraizadas em nosso inconsciente, como a de que o homem é sempre o agressor e a mulher sempre a vítima. Eu não queria os rótulos de torturador e vítima. Eu queria investigar uma construção de personagens que procurasse o seu caráter genuíno, complexo. Ou seja, como haviam se tornado aquilo ali pelo o qual estavam sendo julgados e classificados (torturador e torturada). O meu esforço foi o de escrever, pela encenação, a expressão “nem sempre” dentro da construção “quem cala consente”. Como se quisesse dizer que quem cala – nem sempre – consente. Como se quisesse dizer que a vida persiste em espaços muitas vezes complexos de serem ditos e/ou determinados.

E agora com ESPERANDO GODOT eu acredito que poderei dar continuidade ao que foi iniciado. Parto de outro provérbio que desta vez prega que “quem espera sempre alcança”. Porém, agora, desejo jogar de outra forma. Se em NÃO DOIS eu contrapus a imagem (encenação) ao que estava inscrito no inconsciente (“quem cala consente”), desta vez eu quero que a encenação assegure o que o ditado repete e instaura em nós: o fato de que quem espera acaba, inevitavelmente, por alcançar sua espera. Porém, com a dramaturgia de Beckett, tenho um texto que “defende” a espera e anula a possibilidade da chegada. Mas é pelo embate texto/encenação que pretendo problematizar essa impossibilidade da chegada. Será mesmo que não é possível que Godot chegue? O embate, mais uma vez, torna-se necessário para que se descubra – por nós, neste momento – o valor da espera, quais são suas qualidades e como ela se movimenta. Não importa Godot chegar. Importa especular sobre como o ser humano está fadado a uma busca por preenchimento – esta sim – difícil de aportar. (Para saber mais sobre a montagem de ESPERANDO GODOT, acesse desesperandogodot.blogspot.com).



1. Título de um artigo escrito por Jerzy Grotowski.